Mistério talvez seja a palavra que mais define a escritora Clarice Lispector. Veio de um mistério, por isso, neste dez de dezembro, dia em que ela nasceu, em 1920, ela desejaria aos que ainda estão vivos – vivos não são os que estão acima das covas – mas os que realmente VIVEM, os que sabem extrair o sumo sagrado, o sumo mais doce da vida. Pois que só temos uma!
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Mostrando postagens de 2015
A verdade, uma aprendizagem
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Pablo Picasso: The blue room, 1901. "Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta." = Clarice Lispector em Para não esquecer , p. 38, São Paulo: Siciliano, 1992. Arte: The blue room. Picasso, 1901.
Os professores, um pescador de Petrolina e um filósofo alemão
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O filho de seu Neirivaldo não será pescador O pescador estava montando a rede num dos bairros mais antigos de Petrolina. A teia se estendia pendurada em pés de eucalipto que ladeiam um canal. A cidadã aqui, essa mesma que escreve essas linhas, achou aquilo tudo bonito. Achou muito bonito mesmo. Meio tímida, perguntou a ele se poderia tirar algumas fotos do seu labor. Enquanto o fotografava num celular, pergunta: - Seu Neirivaldo, há quanto tempo o senhor pesca? - Pra mais de vinte anos, minha filha, que eu tiro o meu sustento e o da minha família assim... - Quantos anos o senhor tem? - Quarenta e cinco. - O seu filho vai seguir sua profissão? - Não, graças a Deus que não, ele tá estudando! Prossigo esse relato com um brado de – Viva! aos professores, lembrando que foi num dia 15 de outubro que nasceu - há 171 anos - Friedrich Wilhelm Nietzsche. Além das palavras do seu Neirivaldo, recorro também à obra do filósofo alemão para reforçar a impor...
A vida, esse banquete
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“A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a tolha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maças vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante em que seriam esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse.” = Clarice Lispector. Felicidade Clandestina. A repartição dos pães, p. 98. Francisco Alves editora, 1994, 8ª edição.
O melhor delito do mundo
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Judith Leyster: duas crianças com um gato. 1629. Um crime afiançável com certeza! “Quem nunca roubou não vai me entender. Quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.” Clarice Lispector em Felicidade clandestina . Conto Cem anos de perdão , p. 68, 1994, 8ª edição, Editora Francisco Alves.
Tem que ser Clarice! É um chamado! Preciso atender!
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Os dois saltimbancos. Pablo Picasso. Paris, 1901 Em algum ponto deve estar havendo um erro: é que ao escrever, por mais que me expresse, tenho a sensação de nunca na verdade ter-me expressado. A tal ponto isso me desola que me parece, agora, ter passado a me concentrar mais em querer me expressar do que na expressão ela mesma. Sei que é uma mania muito passageira. Mas, de qualquer forma, tentarei o seguinte: uma espécie de silêncio. Mesmo continuando a escrever, usarei o silêncio. E, se houver o que se chama de expressão, que se exale do que sou. Não vai mais ser: “Eu me exprimo, logo sou.” Será: “Eu sou; logo sou.” | Clarice Lispector. A descoberta do mundo, p. 270 | Arte: Os dois saltimbancos, Picasso, Paris, 1901
Tomaz Maciel, meu professor de literatura, se foi
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Não era aula que ele dava, era feitiçaria. Eu e uma amiga, Luciana Marinho, o chamávamos secretamente de bruxo. Tomaz Maciel, você foi meu amigo, acreditou em mim e sempre me quis por perto. Meu professor de literatura brasileira. Obrigada por ter sido sua aluna. Foram imensas as marcas que você deixou. A minha vontade de ser jornalista foi alimentada por suas aulas, sempre maravilhosas, sempre inesquecíveis.
As máscaras nossas de cada dia
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James Ensor, autor do desenho acima, diria para Clarice: - Todo artista é farto em máscaras! Quantas máscaras usamos hoje? Na hora de deixar o filho no colégio? Ao cumprimentar o porteiro? Dona Maria da padaria? O caixa do banco? Ao ver os pés do sem-teto que arrumou um teto na escadaria de um centro cultural no centro de Petrolina? O teto dele? Um lençol puído que deixou à mostra os pés descalços. Solenemente doridos. Para tudo ou para nada, uma dose de Clarice Lispector: "Foi para casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava lavando as mãos e via a persona afivelada no seu rosto: a persona tinha um rosto parado de palhaço. Então lavou o rosto e com alívio estava de novo de alma nua." = Em A Descoberta do Mundo, p. 151.
Todos os contos de Clarice Lispector reunidos em inglês
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Paul Gauguin: "De onde viemos? Que somos? Para onde vamos?" Os contos de Clarice em inglês. Olha só, em tradução livre, o que a articulista do The Boston Globe escreveu sobre a obra reunida pelo biógrafo Benjamin Moser e recentemente publicada nos Estados Unidos: Num último fluxo de consciência, Soul Storm, a última linha pode revelar que Lispector sabia que suas histórias eram bem radicais: “Eu sei que eu devo parar, não por falta de palavras, mas porque essas e aquelas coisas em que somente eu pensei e não escrevi, não são normalmente publicadas em jornais”. A articulista Rachel Shteir termina assim a resenha: Nós somos mais ricos por termos tido a oportunidade de ver o que Clarice Lispector pensou e publicou. O artigo na íntegra: The complete stories = = =
Nina Simone
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Imagem capturada do documentário "O que aconteceu, miss Simone?" Que história essa de Nina Simone! Parte da vida dela está num documentário dirigido por Liz Garbus. Ela foi batizada de Eunice Kathleen Waymon, mas teve que mudar de nome. Precisou, para sobreviver, cantar a “música do diabo” em bares americanos e não queria que a mãe descobrisse. A meta de Nina Simone era se tornar uma pianista clássica. Queria tocar Bach. Enfrentou preconceitos. Enfrentou a pobreza. Enfrentou o marido que batia nela. Foi defensora dos direitos dos negros nos Estados Unidos. Viva Nina Simone!
Definição engraçadinha
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Noctâmbulos, quadro de Edward Hopper, 1942. Por você, eu dormiria de meia pra virar burguês... Ele tem nove anos, e no trecho acima da música Por você , Barão Vermelho, me pergunta: - O que é burguês? - O significado de burguês? Carambola, como vou explicar o que é burguês? Vou falar dos burgos, da Revolução Francesa, do Romantismo etc? O silêncio perdura enquanto a canção continua e ele parece ter esquecido o assunto. - Já sei! ... burguês é quem gosta de hambúrguer! = = =
O nosso I-pod era o rádio: carta aberta a David Bowie
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Durante um show, Bowie tenta sintonizar seres extraterrenos amigos seus, é claro! David , te dou pérolas e diamantes de todo o meu coração. Lá pelos anos oitenta, eu ouvia você pelas ondas que me chegavam pelo rádio. Quem consegue discordar da magia daquelas noites maravilhosamente insones? Noites de adolescente em Petrolina, sertão de Pernambuco. O rádio era nosso I-pod, i–phone, Samsung-galaxy, moto-g... Freddy está tão certo naquela canção, Radio Ga Ga ! Eu era feliz... e sabia! David , como isso aqui não é uma dissertação de mestrado, ouso afirmar que eu sei qual é a sua Pasárgada. A sua Pasárgada está localizada no espaço sideral. E eu posso provar com os títulos de algumas canções suas: Starman, Ziggy Stardust, Space oddity, Life on Mars? Bowie, te ai lóvi iú. Não, não. Não porque o amor seja uma palavra antiquada e sim porque “ o amor nos desafia a cuidar das pessoas no fim da noite, o amor nos desafia a mudar nosso jeito, nos desafia a cuidar de...
O São João é o carnaval do Nordeste
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Candido Portinari soube traduzir o festejo mais quente do Nordeste brasileiro - Olha pro céu, meu amor, vê como ele tá lindo... - Existe o verbo sanfonar? - Sim ! Todo o interior do Brasil está conjugando esse danado: eu sanfono | tu sanfonas | ele sanfona | vós sanfonais | eles, elas sanfonam São diversos os palcos que encontramos em Petrolina, Cabrobó, Lagoa Grande, Orocó, Salgueiro, Santa Maria da Boa Vista Bodocó, Juazeiro, Curaçá. A música está nas roças, ruas, praças e calçadas. O São João é o nosso carnaval! É feriado na véspera e no dia, como acontece com o Natal! Forró do bom mesmo pra quem é da terrinha é forró pé-de-serra. Ele é feito com três pessoas: uma no triângulo, outra na sanfona e outra na zabumba. E a festa tá feita! Posso afirmar com toda certeza que o pai do São João é Luiz Gonzaga. Foi ele quem mais cantou as alegrias e tristezas do nordestino. Em Petrolina , Pernambuco, todo cidadão que se preze enfeita a casa...
A perda, segundo Elizabeth Bishop
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Vamos dançar para espantar as dores. La danza, quadro de Henri Matisse Uma arte (Elizabeth Bishop) A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subseqüente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. tenho saudade deles. Mas não é nada sério. — Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça ( Escreve! ) muito sério. = Bishop, Elizabeth. O iceberg imaginário e...
O pedreiro e o poeta
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René Magritte: o palácio das cortinas Um pedreiro foi o responsável pela descoberta de uma pegadinha que Fernando Pessoa aplicou nos seus felizardos leitores. A decifração de um não tão claro enigma veio de um estudioso, mais tarde biógrafo arretado do multifacetado poeta português. O jurista José Paulo Cavalcanti Filho me recebeu e um amigo para uma entrevista no seu escritório em Recife. O tema não era literatura, e sim algo relacionado à Constituição Federal, a direitos e deveres. Eu acho que ainda tenho o resultado dessa entrevista entre os meus velhos papéis. Supergeneroso , José Paulo nos contou que sempre achou estranhos os seguintes versos de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Ele disse que se perguntava, encafifado: - Como alguém pode fingir algo que realmente é verdade? A resposta seria uma tarefa digna de grande detetive e essa investigação levaria a...
Uma canção para John Fante
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Fante nos olha e nos presenteia John Fante (1909-1983) me foi apresentado por uma amiga, Natyara Amorim. Mil agradecimentos a ela são insuficientes. - John , é na sua escrita que eu consigo surfar. Eu que nunca serei surfista. Pelo menos nesta vida. Prefiro apostar tudo na presente encarnação. Trechos de “Espere a primavera, Bandini”: |A incerteza da paz nascente agitou-se dentro das profundezas, dez milhões de quilômetros dentro dele.| |Odiava August por causa disso, por fazer um cavalo de batalha da sua pobreza.| |A senhora podia ser santa e firme, mas por que deviam todos eles sofrer? Sua mãe tinha Deus demais em si.| |Os dias profundos, os dias tristes.| |Havia peixe para o jantar porque vovó Donna mandara cinco dólares pelo correio.| = = =
Festival de Besteira que Assola o País
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Pessoas , por favor, me digam que isso tudo é uma brincadeira. Em Pernambuco, uma lei foi criada, votada e aprovada determinando horários de malabarismo e outras manifestações culturais em sinais de trânsito e pelas ruas do Recife. Agora, um deputado de Goiás propõe mais uma lei esdrúxula: regulamentar horário de entrega de comida em casa! Como eu queria que Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, estivesse aqui neste planeta. Ele resumiria bem o estado de espírito que envolve esses dias em que vivemos.
Lima Barreto e Mário de Andrade
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O Abaporu (de Tarsila do Amaral) observa e comenta: - Pena que Lima Barreto e Mário de Andrade nunca se encontraram Eu tenho que compartilhar essa história! É sobre os brasileiríssimos escritores Lima Barreto e Mário de Andrade. Quem contou foi Antonio Arnoni Prado, uma narrativa que ele ouviu de Sérgio Buarque de Holanda e foi mais ou menos assim: Sérgio Buarque de Holanda tinha ido ao Rio de Janeiro distribuir alguns exemplares da revista Klaxon, dos modernistas paulistas. Na livraria Schettino, ele encontrou nada mais nada menos Lima Barreto – ele estava dormindo lá, por generosidade de Chico Schettino, o dono. Lima Barreto então revelou que estava devendo uma visita a Mário de Andrade, que tinha lido todos os seus livros. Foi assim que Lima Barreto se referiu a Mário: ... “brasileiro da minha raça e da minha cor, um intelectual diferente de todos os que conheci até agora nesse meio de literatos e de bacharéis.” (...) Ao contrário da má vontade e d...
Clarice Lispector e a poesia de Emily Brontë
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Um dia desses eu acordei com uma moleza de gripe e depois do café voltei pra cama. Achei então que era um bom momento para ler as poesias de Emily Brontë (e com trema). Como ela me compreende, Lúcio, tenho vontade de dizer assim. Há tanto tempo eu não lia poesia, tinha a impressão de ter entrado no céu, no ar livre. Fiquei até com vontade de chorar mas felizmente não chorei porque quando choro fico tão consolada, e eu não quero me consolar dela; nem de mim. Você está rindo? – Fez há uma semana mais ou menos um grau abaixo de zero. Alguns dias depois desconfiei que o tempo estava bom e fui para a terrasse. Ainda estava frio e ficará assim até março, mas estava tépido e fresco, com um perfume que só se sente mesmo depois do inverno por causa das folhas que desde o começo caem e ficam no chão. Eu respirei tanto que Deus me castigou e por isso no dia seguinte eu estava com a moleza de gripe e li Emily Brontë... Você vê que as coisas se completam perfeitamente na Itália. ...
Doce náusea
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Clarice Lispector me leva a passear por labirintos surpreendentes. Labirintos em que sempre haverá uma saída, ou melhor, várias saídas. No conto "Amor", Ana se depara com o não familiar, com o estranho. E aí um vácuo suga os pés e a alma da personagem. É para quem gosta de interromper a respiração. Um maravilhoso salto no escuro. == Trecho do conto "Amor": "Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse o outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.” In Laços de família, página 34.
Pra chegar à Pasárgada...
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Manuel Bandeira... não posso creditar a foto pois desconheço a autoria... Acabei de ler Itinerário de Pasárgada . O trajeto do poeta pelo poeta. Sempre me surpreendi com Manuel Bandeira e seus poemas vestidos de uma aparente simplicidade que nos podem levar a subir, subir, subir, subir... ... sem o triste fim de Ícaro. De tantas páginas, grifei tanto o livro, o trecho que segue me cativou pelo tom descontraído e ao mesmo tempo confessional: Sim, gosto de ser musicado, de ser traduzido e... de ser fotografado. Criancice? Deus me conserve as minhas criancices! Talvez nesse gosto, como nos outros dois, o que há seja o desejo de me conhecer melhor, sair fora de mim para me olhar como puro objeto. = Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira, p. 104.
Mulheres de todo o mundo, um feliz dia!
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Bailarinas em Azul. Degas, 1899. ... sem nenhum acontecimento me provocando, sem nenhuma expectativa, de tarde, esta tarde, eu, aplicando-me na caligrafia como uma criança de escola, eu, também uma das freiras que costuram, em labor de abelha bordo a fio de ouro: Viva Hoje. (Clarice Lispector in A descoberta do mundo , p. 306) = = =
O senhor agora vai mudar de corpo
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Cada palavra era como cuspir uma pedra. Uma pedra de fogo. ... tecem a roupa da morte. A noite inteira se derramará sobre o corpo. Viver não é apenas perigoso, é, principalmente, milagroso. ... diante de um céu azul, exageradamente azul. ... gigante mundo em quatro paredes. ... campo minado de confissões. – Vamos os dois sambar na avenida, com uma biblioteca debaixo do braço. Sem as palavras não poderá se salvar. Estive em alto mar durante toda a leitura de O senhor vai mudar de corpo , de Raimundo Carrero. As frases acima foram retiradas do mais recente romance do escritor e fragmentadas ou não, são como salva-vidas lançados pela escrita que muitas vezes me provocou uma certa vertigem. Então não é à toa que Carrero traz Herman Melville e seu Moby Dick nessa narrativa plena de corpo. O livro é aberto com uma frase de Clarice Lispector: “O corpo é a única certeza que nos acompanha até a morte.” Então também não é à toa que...
Clarice e Bergman
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Cena do filme Persona , de Ingmar Bergman "Não, não pretendo falar do filme de Bergman. Também emudeci ao sentir o dilaceramento de culpa de uma mulher que odeia o filho, e por quem este sente um grande amor. A mudez que a mulher escolheu para viver a sua culpa: não quis falar, o que aliviaria o seu sofrimento, mas calar-se para sempre como castigo. Nem quero falar da enfermeira que, se a princípio tinha a vida assegurada pelo marido e filhos, absorve no entanto a personalidade da que escolhera o silêncio, transforma-se numa mulher que não quer nada e quer tudo – e o nada o que é? E o tudo o que é? Sei, oh sei que a humanidade se extravasou desde que apareceu o primeiro homem. Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras dizem o que não quero dizer. Também não vou chamar Bergman de genial. Nós, sim, é que não somos geniais. Nós que não soubemos nos apossar da única coisa completa que nos é dada ao nascimento: o gênio da vida." (Clari...
Clarice Lispector e o dicionário das flores
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Girassóis. Van Gogh. Clarice convida a mudar-se para um reino novo, o reino das flores. Essas redefinições estão no livro Água Viva: CRISÂNTEMO : “O crisântemo é de alegria profunda. Fala através da cor e do despenteado. É flor que descabeladamente controla a própria selvageria.” GERÂNIO : “Gerânio é flor de canteiro de janela. Encontra-se em São Paulo, no bairro de Grajaú e na Suíça.” ORQUÍDEA : “A formosa orquídea é exquise e antipática. Não é espontânea. Requer redoma. Mas é mulher esplendorosa e isto não se pode negar.” (...) TULIPA : “Tulipa só é tulipa na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto para ser.” = = =
O silêncio segundo Nietzsche
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Quero o silêncio. Óleo sobre tela. Por Tom Azevedo. Tem palavras que colam na gente. Por serem feias, estranhas, bonitas, sonoras. DISPÉPTICO é uma delas. “Todos os calados são dispépticos”, setenciou Friedrich Nietzsche em Ecce homo: como alguém se torna o que é : “Parece-me também que a palavra mais grosseira, a carta mais grosseira, são ainda mais humanas e mais honestas do que o silêncio. Aos que silenciam falta-lhes quase sempre uma finura e cortesia do coração; silenciar é uma objeção, engolir as coisas produz necessariamente mau caráter – estraga inclusive o estômago. Todos os calados são dispépticos .” = = Página 29, Companhia das Letras, 1995.
A última coisa que eu queria era me proteger dos riscos da vida
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Fui e sou apaixonada por muitos “Paul”: o ator; o Beatle; e tem também o escritor, Paul Auster (foto), que faz aniversário hoje, 3 de fevereiro de 2015. O que me fascina na obra de Auster é o manejo incomparável da escrita. Ele parece um maestro. Gosto também da recorrência de certos temas na sua obra, como as terríveis e adoráveis coincidências que são pregadas por e pelas nossas vidas. Admiro o escritor ou a escritora que sempre soube que queria escrever, como uma missão, ou uma maldição, ou uma sina. Em Da mão para a boca (Hand to mouth) , Auster nos conta como foi difícil se manter do ofício de escrever, como ele se posiciona tão firmemente em relação ao caminho que precisou seguir: “Não vou defender as escolhas que fiz. Se elas não foram práticas, a verdade é que eu não queria ser prático. Queria viver experiências novas, conhecer o mundo e me testar, entrar e sair de várias coisas, explorar o máximo possível. Desde que eu mantivesse os olhos abertos, pa...