Clarice e Bergman
Cena do filme Persona, de Ingmar Bergman |
"Não, não pretendo falar do
filme de Bergman. Também emudeci ao sentir o dilaceramento de culpa de uma
mulher que odeia o filho, e por quem este sente um grande amor. A mudez que a
mulher escolheu para viver a sua culpa: não quis falar, o que aliviaria o seu
sofrimento, mas calar-se para sempre como castigo. Nem quero falar da
enfermeira que, se a princípio tinha a vida assegurada pelo marido e filhos,
absorve no entanto a personalidade da que escolhera o silêncio, transforma-se
numa mulher que não quer nada e quer tudo – e o nada o que é? E o tudo o que é?
Sei, oh sei que a humanidade se extravasou desde que apareceu o primeiro homem.
Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras
dizem o que não quero dizer. Também não vou chamar Bergman de genial. Nós, sim,
é que não somos geniais. Nós que não soubemos nos apossar da única coisa
completa que nos é dada ao nascimento: o gênio da vida."
(Clarice Lispector no início da crônica Persona, publicada em 2 de março de 1968
no Jornal do Brasil. Reunida em A
descoberta do mundo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992)
= = =