Clarice Lispector e os rudes ritmos ritualísticos da adolescência em Laços de Família
Ternura, obra de Tom Azevedo |
Há essa atmosfera delicadamente adolescente na obra Laços de Família (1960), especialmente nos contos Mistério em São Cristóvão e Preciosidade, peças que são resultantes do esmerado labor de Clarice Lispector, expert em atar e desatar narrativas do processo de adolescer experimentado por suas personagens. E é preciso notar e anotar que, logo na estreia como romancista, enxergam-se marcas do espírito teen em Joana, apesar de essa heroína ser caracterizada como adulta, casada inclusive.
Encostando a
testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o
grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se
estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca,
onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser
comida pela galinha que as pessoas iam comer.
(LISPECTOR, Perto
do Coração Selvagem, p. 19)
Tal teen spirit ou teen soul corporifica-se nas reminiscências da
infância feliz junto ao pai em Perto do Coração Selvagem (1943). N´A
Paixão Segundo G.H. (1964), a protagonista passa por algo que não consegue
compreender. Essa incompreensão a move por labirintos extremamente cerebrais: “Não
sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.”
(LISPECTOR: A Paixão segundo G.H., p.15). Logo adiante, a personagem busca
racionalizar o que lhe ocorrera.
A isso quereria
chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia
depois para onde voltar: para a organização anterior.
(LISPECTOR: A
Paixão segundo G.H., p.15)
Racionalização sujeita a perigos. Se viver é muito
perigoso, Riobaldo, escrever sobre o viver também o é. Talvez até com mais
intensidade. Escreve-se porque se está vivo. Está-se vivo porque se escreve.
A
narrativa em primeira pessoa leva o leitor a percorrer uma trajetória abissal,
ao passar por caminhos que tiram o fôlego de quem se atreve a passar os olhos por
suas páginas.
A isso prefiro
chamar de desorganização pois não quero me confirmar no que vivi – na
confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho
capacidade para outro”.
(LISPECTOR: A
Paixão segundo G.H. , p. 15)
A exemplo de G.H., as personagens sem nome dos contos Mistério
em São Cristóvão e Preciosidade também sofrem uma desorganização, bastante
comum ao trajeto das criaturas que orbitam o universo ficcional de Clarice
Lispector. Personagens que, em algum momento, perdem a estrutura cotidiana que
os sustentam: Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem
humana. (LISPECTOR: A Paixão Segundo G.H., p. 16). Nasce, então, a pergunta: como
os personagens se comportam depois do desmonte, de viver essa pane, esse acontecimento?
Virginia Woolf optaria por afirmar que
(...) podem
acontecer duas coisas: ou a alma é arremessada contra os rochedos e espatifada
ou, encontrando algo em que se segurar, lenta e dolorosamente consegue
erguer-se da água, tornar a ganhar a terra firme e finalmente emergir por cima
de um universo arruinado para explorar um mundo recém-criado em um plano
distinto. O que seria? Destruição ou reconstrução? Essa era a questão.
(WOOLF, Virginia:
Flush, p. 66).
Questão que, em se tratando de Clarice, nunca será facilmente
resolvida. Haverá, com certeza, desnorteio. A bússola é perdida de uma vez por
todas. Vide o que ocorre com a personagem G.H.. Haverá também o norteio. Finalmente
encontrada, a bússola de Joana, de Perto do Coração Selvagem, a faz
viajar e deparar-se com todo um oceano. Lóri, de Uma Aprendizagem ou O Livro
dos Prazeres (1969), se verá diante de dois pontos (o modo como Clarice
finaliza a narrativa). Ana, do conto Amor, apagará a flama do dia.
As criaturas gestadas por Clarice Lispector submetem-se à
visão de rosas, de um cego mascando chicletes ou de três mascarados num jardim,
que é o que ocorre em Mistério em São Cristóvão. Preciosidade discorre sobre como uma menina é atacada
por dois rapazes no meio de uma rua.
O que se seguiu
foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam,
quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa
que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada.
(LISPECTOR: Laços
de Família, p. 112)
A trajetória da mocinha de 19 anos de Mistério em São
Cristóvão é oposta à da garota de 15 anos de Preciosidade.
Entretanto, reconhece-se nesses dois contos a existência de ritos que se assemelham
aos ritos de passagem: “E então já não se apressou mais. A grande imolação das
ruas. Sonsa, atenta, mulher de apache. Parte do rude ritmo de um ritual.” (LISPECTOR, p. 109, grifo
meu).
O transpor da adolescência para a fase adulta, apesar de
que, cronologicamente, a personagem de Mistério já possa ser considerada
adulta – porém, lembremos que para o escalar do tempo dos norte-americanos, ela
ainda seria teen.
O que acontece em Preciosidade acontece antes do
jantar, junto com a família. O que acontece em Mistério acontece depois
do jantar, acontecimento que acaba servindo como um anti-clímax da narrativa,
anunciando, com toda a intensidade, o que está por vir. Em Mistério em São
Cristóvão, o rito é sutil e, ao mesmo tempo, visível no corpo, simbolizado
pelo surgimento de um fio de cabelo branco na cabeça da personagem.
Em Preciosidade, há um rito de passado forçado,
violento, do qual a personagem está fadada a suportar como fatalidade. Nesse
momento, o narrador intervém: Mas como
voltar e fugir se nascera para a dificuldade? (LISPECTOR: Laços de Família,
p. 110)
Cada pessoa percorre caminhos, seja pela via da dor, seja
pela via da alegria. A menina de Preciosidade transforma-se numa mulher
depois do que lhe ocorre: torna-se vaidosa ao notar descuidadas suas unhas – há
a presença feminina do que nesse amontoado de cálcio que os humanos batizamos
de unha: “Preciso cuidar mais de mim.” (LISPECTOR: Laços de Família, p. 115). E
que ainda deverá exigir sapatos novos da família.
Enquanto isso, a mocinha de Mistério entrará num
túnel do tempo em que se quedará na infância: “Toda a construção laboriosa de
sua idade se desfizera, ela era de novo uma menina.” (LISPECTOR, Laços de
Família, p. 144).
Só depois é que ela vai recuperar sua verdadeira idade.
(LISPECTOR, p.144) De algum modo, as
duas personagens se metamorfoseiam, uma temporariamente, a outra, talvez possa
vir a se tornar um pássaro de fogo.
Os olhares de Mistério fundam uma unidade, um círculo quadrado, segundo o
narrador.
Nenhum espectro
viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo tempo, vagarosos, na
ponta dos pés. Mal, porém, se quebrara o círculo
mágico de quatro, livres da vigilância mútua, a constelação se desfez com
terror.
(LISPECTOR: Laços de Família, p. 143, grifo meu)
“Círculo mágico de quatro”: uma referência incomum à
figura geométrica mais popular do nosso planeta, ao passo que em Preciosidade,
a personagem sempre foge de ser examinada por olhos humanos e no entanto
termina sendo tocada no corpo só seu.
Nenhuma das duas personagens vai expressar verbalmente o
que lhes ocorrera às suas respectivas famílias. Verbalmente não. A histeria, o
nervosismo e o novo modo de se portar da menina de Preciosidade à mesa
serve como um comunicado.
Mas no jantar a
vida tomou um senso imediato e histérico: - Preciso de sapatos novos! Os meus
fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama
muita atenção! Ninguém me dá nada! – e estava tão frenética e estertorada que
ninguém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia. Só disseram: - “Você não
é uma mulher e todo salto é de madeira”.
(LISPECTOR: Laços
de Família, p. 116)
O que essas duas figuras do universo ficcional de
Lispector possuem em comum? Ou de diferentes? A mocinha de Mistério dá-nos
a entender que ela tem uma intensa vida vivida no espaço doméstico, tanto que o
que ocorre é no jardim da sua casa. Em Preciosidade, a personagem gosta
de estar nas ruas, nos ônibus, na escola. Percebe-se, então, que há três
espaços geográficos bem definidos: a casa, a escola e as ruas. Em casa, há o
relacionamento com a empregada. Na escola, chama a atenção, pois é naturalmente
inteligente (LISPECTOR, 1995, p.106).
Nas ruas, apesar do medo que a acompanha, é uma anônima, anonimato que impulsiona
sua alegria em estar viva. Para cada lugar, assenta-se uma máscara de proteção,
de disfarce, uma couraça. Tema recorrente na obra de Clarice. Em Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, o narrador afirma que Lóri...
(...) usava a
máscara de palhaço excessiva. Aquela mesma que nos partos da adolescência se escolhia para não se
ficar desnudo para o resto da luta”.
(LISPECTOR: Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, p. 44, grifo meu)
No transcorrer desse texto – um libelo – que discorre
sobre as máscaras nossas de cada dia, o narrador explica que as fabricamos no
decorrer das nossas existências.
Inclusive
os adolescentes, que eram de rosto
puro, à medida que iam vivendo fabricavam a própria máscara. E com muita dor.
Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel que
era de uma surpresa amedrontadora. Era a liberdade horrível de não-ser. E a hora
da escolha.
(LISPECTOR,
Laços de Família, p. 44, grifo meu)
Nos ritos adolescentes testemunhados pelo leitor de
Clarice Lispector, identificam-se as reações das famílias. São ritos
individuais. Cada pessoa que acenda sua própria fogueira, arda ou permita que a
chama feneça. A família de Preciosidade percebe alguma coisa de
diferente na garota, pois não tem coragem de negar a demanda por sapatos novos.
As personagens dos dois contos têm direito ao grito, grito que é ouvido pela
família de Mistério. A menina de Preciosidade poderia reivindicar
um grito sobre-humano logo depois do que viveu, todavia esse grito ficará
represado por algum tempo.
‘Tinham medo que
ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem’, raciocinou, eles
não sabiam que não se grita. (LISPECTOR: Laços de Família, p. 113, grifo da autora).
Quando esse rito irromper, será mais que um grito. Será
um urro. Animalesco mesmo. E ocorrerá no lavatório da escola.
Onde, diante do
grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: estou sozinha no
mundo. Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no
mundo!
(LISPECTOR: Laços
de Família, p.114)
Ao lado da mocinha misteriosa de 19 anos, estarão a avó e
a mãe:
Enquanto isso, a
casa iluminara-se toda. A mocinha estava sentada na sala. A avó, com os cabelos
brancos entrançados, segurava o copo dágua, a mãe alisava os cabelos escuros da
filha, enquanto o pai percorria a casa.
(LISPECTOR: Laços
de Família, p. 143)
Essa família vai ficar horrorizada mesmo é com o irromper
de um fio de cabelo descolorido: “Mas na imagem rejuvenescida de mais de uma
época, para o horror da família, um fio branco aparecera entre os cabelos da
fronte.” (LISPECTOR, p. 144).
Sempre me atraíram os adolescentes nos universos criados
por Clarice Lispector. Em Joana, enxergo sim uma adolescente. Adolescente no
sentido de um ser que vive a angústia e a alegria profundas. Em grau máximo.
Quando teenagers, éramos mais sentidores. O mundo nos invade a
cabeça sem freios. Nosso corpo sofre mudanças tão rápidas. Somos e estamos
desajeitados. Há um certo desconforto em se ter um corpo, um corpo que tem que
ser exposto. Há uma ânsia de viver, de ser e de se mostrar misturada à
necessidade de se esconder. Há o medo de se revelar.
O conto Preciosidade é magistral pois consegue
dizer muito desse turbilhão de emoções que acontece nessa fase preciosa que é a
adolescência, ausente o sentimento de nostalgia. O que há é mais uma
constatação de que as coisas são. É inevitável lembrar de outros contos de
Clarice que trazem adoleSeres. O
Beijo é de uma extrema simplicidade revestida de delicadeza ao perfilar um
rapaz que conta para a namorada a primeira vez em que beijou. Na verdade, ele
mais recebeu do que deu um beijo.
Até que, vinda da
profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o
encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara um
homem.
(LISPECTOR: Laços
de Família, p. 174 e 175)
Felicidade Clandestina é a via-crucis de uma menina que recebe a
promessa de conseguir emprestado o livro Reinações
de Narizinho, da filha de donos de uma livraria. Essa guria vai torturá-la
por dias e dias exibindo o objeto de desejo da outra como uma isca inalcançável.
Até que a mãe da algoz descobre as artimanhas da filha e entrega a obra para a
vítima dizendo-lhe: E você fica com o
livro por quanto tempo quiser. A personagem alcança-se o êxtase.
Trata-se de prazer. Trata-se de alegria. Intensa alegria.
Chegando em casa,
não comecei a ler. Fingia que não tinha, só para depois ter o susto de o ter.
Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui
passar pela casa, adeiei mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia
onde guardara o livro, achava-o, abria-o. Criava as mais falsas dificuldades
para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria
ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia
no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
(LISPECTOR:
Felicidade Clandestina, p. 54)
Começos de uma Fortuna, conto também de Laços de Família, narra a
história de um rapazinho que possui uma preocupação cada vez mais crescente na
sua pequena grande vida: o desejo/necessidade/vontade de acumular dinheiro. E a
atmosfera da vida vivida dentro de casa e a vida vivida nas ruas da cidade:
A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença de luz -
como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições
haviam tomado as circunstâncias durante a noite - , além da diferença de luz,
havia a diferença do modo de ser. Quando era pequeno a mãe dizia: "Fora de
casa ele é uma doçura, em casa um demônio." Mesmo agora, atravessando o
pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos
criança, mais sensível e sobretudo sem assunto.
(LISPECTOR: Laços de Família, p. 132, grifos da autora)
Ele pretende se tornar um homem, depois um marido, ser
rico, muito rico. No final, a pergunta premente, mais do que necessária: “-
Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas, papai, como são
promissórias?” (LISPECTOR, 1995, p. 137).
Você sorriu. Também eu.
_____________
Nádia
Gonzaga, jornalista (UFPE),
pós-graduada em Ensino de Comunicação (UNEB) e graduanda em Letras – Língua
Portuguesa e suas Literaturas (UPE).
REFERÊNCIAS
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo
G.H. . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, 14ª edição.
______________. Felicidade
Clandestina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, 8ª edição.
______________. Laços de Família.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, 28ª edição.
______________. Perto do Coração
Selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, 14ª edição.
______________. Uma Aprendizagem ou O
Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
WOOLF, Virginia. Flush: Memórias de um Cão. Tradução de Ana Ban. Porto Alegre:
L&PM Pocket, 2004.
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